Lisboa é para ali

Feirão, 1964.
Estava o Outono a meio. Ele tinha trabalhado todo o Verão como jornaleiro: nas cegadas, nas malhas, na arranca da batata, na esterroa... De sol a sol, assim se define esta profissão. Vieram os primeiros frios e as primeiras chuvas. Nas terras pouco se faz, quem tem gado leva-o para o monte, em nõ chovendo ou nevando. Ele, como só tinha umas ovelhitas e um burro, e já três filhas, pequenitas mas espertas, não tinha muito por onde ir. Nem sequer o reco para matar pelo São Martinho que aí vinha. Vida dura, ingrata e desgraçada a de um homem que não tem uma lameira nem uns enxertados e nem sequer uns quintais no fundo do povo para poder trabalhá-los. Era tudo à míngua. Mas tinha dicidido que assim não ia continuar. Iria para Lisboa. Ainda não tinha dito à mulher nem sabia sequer o que ia fazer, mas o tio António tinha ido e estava bem, o tio Albino também e ele queria também tentar a sua sorte. À noite, na cama, disse à mulher que ia para Lisboa. A mulher, mais medrosa, riu-se a princípio. "Tens com cada uma, homem!". Mas era mesmo verdade. Ele estava farto de não ter terras, não ter gado e de ter que trabalhar para os outros. Iria à frente. Passava lá dois meses para ver como aquilo era. Se fosse melhor que Feirão, viria buscá-la mais às miúdas.
Ela sabia que quando o marido encasquetava uma ideia na cabeça nem cem homens nem mil mulheres o faziam mudar. Chorou.
As duas filhas mais velhas tinham ouvido a conversa. A mais velha chorava porque não queria ir, enquanto que a outra estava entusiasmada com a ideia de sair daquela terra de pedras, de neve e de fome.

Falaram de Lisboa nas Fragas de Malhapão. Tinham levado para lá o gado. Estavam caladas. Queriam as duas falar de Lisboa mas nenhuma delas queria começar a conversa. Arriscou a mais nova, apontando para a estrada: "Lisboa é para ali". A mais velha começou a chorar. Que não queria ir, que estava bem ali com as ovelhas, com os montes e com a vida. A outra dizia que Lisboa era muito melhor. Que lá havia café. Que se arranja emprego e dinheiro. Que Deus quisesse que o pai se desse lá bem para no fim do Verão irem de vez para Lisboa.
Falavam de Lisboa sem saber se é longe ou perto, se é grande ou pequena... só de ouvir falar.

O pai lá partiu, ficou por Lisboa os meses combinados e lá regressou. A mulher estava no fim da gravidez do que iria ser o primeiro rapaz. Era o quarto filho.
Trouxe prendas para todos: roupas, tecidos, até brinquedos para as pequenitas.
Nos dois meses que por lá passou confirmou a intuição: "Vamos mesmo para Lisboa. Arranjei emprego na estiva, trabalha-se mas ganha-se. Há uma barraca lá, no bairro chinês, ao pé dos nossos. É grande, não chove lá dentro. Depressa começamos a juntar um dinheirito e olha, um dia ainda havemos de ter aqui em Feirão uma casa. Grande, com, pelo menos, um quarto para cada um dos nossos filhos. E havemos de ter muitos". Neste dia ainda não sabia que muitos iriam ser dez.
"E esta casa?" Perguntou ela. "Então, é da tua mãe, para a tua mãe fica".
"E o burro?" Tornou ela. "Vai connosco para Lisboa. Em Lisboa ainda há burros. O comboio pode bem com ele".
Tinha esgotado as desculpas. Ia resignada mas ia. "Então, e quando é que queres ir?" Disse-lhe ele: "A mais velha está a acabar a quarta classe. Breve irá fazer o exame a Resende. A outra está também bem lançada e toda contente por sair daqui. A pequenita vai entrar na escola, entra já em Lisboa. É só deixar nascer o rapaz (intuição de pai), fazemos-lhe o baptizado e vamos embora".

E assim foi. A mais velha lá fez o exame em Resende. Foi com a mãe, manhã cedo, ainda o sol estava a acordar, passou no exame e a prenda foi um queijinho comprado na vila, com um bolo de duas cabeças, comido no monte de Felgueiras. O bébé lá nasceu rapaz, a alegria do pai, foi baptizado, venderam-se as ovelhas e pronto.
Veio o Agosto quente como os Agostos de antigamente. Iriam até à Régua, apanhavam o comboio para o Porto e depois outro para Lisboa. Saíam em Braço de Prata e o bairro era mesmo ali.
Chegou a manhã da partida. Estavam todos nervosos. A mãe chorava; a filha mais velha chorava com ela. O pai foi-se despedir de alguns familiares e amigos; a segunda filha lá foi com ele, toda contente. "Para onde vais?" perguntavam as amigas. "Vou para Lisboa", respondia ela com um sorriso escancarado.

Estavam já para sair. "Vai-te despedir da tia Joaquina Padreca", disse a mãe à filha mais velha. Deviam-lhe muito. Sobretudo esta filha que a ajudava em troca de uns feijões e de umas folhas de couve.

Bateu à porta. "Tia Joaquina?" Procurou ela. "Diz, filha", respondeu a velhota. "Olhe, venho cá despedir-me", dizia ela lavada em lágrimas, "Vou para Lisboa". "Ai filha! Vais para Lisboa. Que não te torno a ver. Adeus. Até à eternidade!" E foi. Nunca mais a viu.

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