Prendas tardias



Recebi, ontem, de umas amigas, as 'Dominicas', umas prendas tardias. Tardias por minha culpa, claro está. Dois livros interessantes: o livro do desassossego, de Fernando Pessoa e Contemplação carinhosa da angústia, da Agustina Bessa-Luís.

Dois autores que têm andado ausentes dos meus olhos e das minhas estantes. Ausentes mas não esquecidos.
De Fernando Pessoa acho que ainda não cheguei à idade de o ler; idade ou maturidade. Há autores assim. Pelo menos para mim. Pode ser este um presságio de que se estão a chegar os tempos de me aproximar deste grande poeta do Século XX.


Em relação à Agustina houve, há uns anos, uma aproximação frustrada. Lá está o livro, "A monja de Lisboa" e lá está o marcador na página 72, que foi até onde consegui chegar.
Pensei que seria bastante inculto e sempre guardei este segredo de que não conseguia ler os romances desta escritora. Mas este livro que me ofereceram já me aliviou. No Prefácio, Pedro Mexia diz assim: "Os leitores de romances que lêem Agustina ficam por vezes desiludidos com o tipo de texto que encontram. Não quer dizer que sejam leitores pouco sofisticados: são apenas pessoas que não estão muito dispostas a um certo grau de divagação, de desarrumação, de desrespeito pela construção de um romance". Não me considero um leitor sofisticado, mas consola-me não ser o único a ter dificuldades.
E lá começo eu a ler este livro de conferências, comunicações, intervenções em vários quadrantes da cultura. E o que é que acho? Pelas primeiras páginas que me parece outra pessoa. De tal modo que pensei em sublinhar algumas passagens que me agradam... Mas não o poderei fazer. Porque, pelos vistos, fica o livro muito riscado. Vou transcrevê-las para um caderno, à moda antiga. Mas deixo-vos, a propósito do já defunto Caim de Saramago, a interpretação e a ligação discreta que Agustina faz da figura bíblica com a inveja: "Uma sociedade pode estar contaminada de inveja, tal como uma pessoa. Tal como aconteceu com Caim, um povo pode ser electrizado pelo fracasso, e uma cultura minada por um desejo de usurpação, de faminta incursão noutras culturas. O invejoso não é habitado pelo desejo; é só movido por uma paixão: a paixão de obter um dom, um carisma, uma prova que não interessam à sua natureza.O drama consiste em que o invejoso não é recuperável. De tudo faz terra seca e salgada; ele não precisa de êxito, basta-lhe a sua insaciedade".

Vamos lá ver se a partir da contemplação carinhosa da angústia (gosto do título sobretudo porque se vê que a angústia pode ter afectos) me atiro de cabeça à página 73 do romance interrompido.
(A imagem é uma pintura "Quodlibet", de Cornelis Nosbertus Gujsbrechts, 1672)

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