A História de uma Cruz


Março de 1960.
A cruz lá está, à beira do caminho, a indicar a quem passa que ali morreu naquele ano invernoso a tia Carminda. A indicar e a pedir orações. Que outra coisa poderia a cruz pedir senão que rezássemos por quem passou a vida a pedir?
A tia Carminda, filha das tristes ervas, com dois filhos, também eles da mesma origem, era pobre e pedinte. Não pedia para ela, pedia para os filhos. Um andava ao dia, a trabalhar para quem o rogasse, e o outro na escola, tentando aprender algumas letras e alguns números.
A mãe, outra coisa não sabia fazer. Não havia dinheiro nem para gado nem para comida. Era mais pobre que outras famílias que tinham ao menos umas ovelhitas ou um bocado de terra onde cultivar uma mão cheia de batatas ou de cebolas.
Esta mulher, o destino assim tinha traçado, era pobre. Pobre e pedinte.
Todos os dias, ainda antes do sino tocar as Trindades, ela saía, com o seu saco de serapilheira, remendado num canto com um tecido às flores, para ir de ladeia em aldeia fazer o que sabia: pedir. E ao final da tarde, quando o sol começava a declinar, regressava toda à pressa para dar de comer à sua única riqueza: os dois filhos.
Era a vida desta mulher, a vida de todos os dias. Nas aldeias vizinhas toda a gente a conhecia: a tia Carminda de Cotelo.
Raramente se atrasava. Às vezes o mau tempo não a deixava chegar a casa; os filhos estavam já habituados, sobretudo nos dias de grandes invernias, que se a mãe não viesse, não lhe tinha acontecido nada. Era só o mau tempo.
Saiu ela naquele sábado, 26 de Março, como era costume, para ir pedir para as costas de Resende: São Martinho de Mouros, Fazamões, Felgueiras, até Feirão, freguesia de passagem para ir e para vir. Apesar de a conhecerem e de serem muito pobres, alguma coisa lhe haveriam de dar. Era dia de inverno. Uma chuva miudinha moeu toda a manhã.
Andou ela errante por aquelas terras e lá tiveram pena da pedinte. Deram-lhe um punhado de castanhas, meia dúzia de batatas, umas maçãs… uma broa…
Ao fim da tarde pôs-se a caminho do regresso. Chegou noite a Feirão. Chovia mais forte, como acontece nos finais de tarde, a adivinhar uma noite de tempestade. Passou ao cruzeiro de Feirão e a magnífica que estava à janela, ao vê-la disse-lhe: Ó tia Carminda, ainda vai hoje para Cotelo? Olha que chove muito. Venha mas é cear connosco, e já cá fica para a Missa de amanhã. Não aceitou. Levava cheio o saco das esmolas e queria ir dar de comer aos ricos filhos que tinham andado o dia todo ao Deus dará. E pôs-se a caminho pelo atalho da Regadinha, o mais rápido apesar de molhado. E lá foi ela, já noite, pensando que, não chovendo muito, num instante se lá punha. Mas o caminho enganou-a. Mal entrou no caminho, daqueles caminhos que são pedras mal ajeitadas, umas mais altas que as outras, o melhor que se conseguia fazer pelos homens da terra que eram lavradores e não pedreiros, não andou mais de meio quilómetro quando, com a pressa, caiu num rego de água. O saco ficou na ponta do caminho a impedir que o rego de água escoasse. Ela, não se conseguia levantar e gritar era escusado. A chuva, as dores, a água que não escorria, e não houve nada a fazer. Ali morreu afogada.
Os filhos estranharam a mãe não ter vindo, mas, como já se disse, não era a primeira vez. Lá passaram a noite com uma côdea que tinha sobrado, e com o resto do caldo que tinha ficado na panela.
No dia seguinte, domingo, o povo de Cotelo que, como não é freguesia, não tem missa na aldeia, pôs-se a caminho da missa mais perto, em Feirão, às oito. E quando estão a entrar no povo vêm um corpo morto no chão. Quem seria quem não seria, ao virarem-ma – ela tinha caído de costas – viram que era a tia Carminda. Mandaram um miúdo a correr que viesse avisar o povo que ela estava morta. Acorreu muita gente. Mandou-se chamar quem de direito para lhe passar a certidão de óbito. Ali se rezou pela alma. Dali se levou para Cotelo e se fez o funeral. E ali se colocou a cruz para que se saiba, enquanto houver lembrança, que uma pedinte ali morreu e para que se reze pela alma, porque rogar a Deus pelos vivos e defuntos é obra de misericórdia que agrada ao Senhor.

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