Dos homens e dos deuses


O poema de José Régio "cântico negro" termina assim: "Não sei por onde vou / sei que não vou por aí". Foi a minha conclusão depois de ver, ontem, o filme "dos deuses e dos homens". Concluí assim porque há situações, na nossa vida, naquela comunidade, que são difíceis, que não se vêm claras. No entanto, também temos a claridade para ver que, apesar de não vermos caminhos, há caminhos que não queremos percorrer. Em tempos de perseguição, no meio de uma guerra civil, coloca-se a pergunta difícil, ficar ou sair. Tudo pesa na decisão: fugir para quê, se Deus nos quer aqui, para quê ficar, se Deus não quer que procuremos o martírio... pontos de vista diferentes, medos, certezas, indecisões... e o filme, cheio de ternura e compaixão, mostra-nos uma comunidade que ali está, no meio de muçulmanos, a quem faz o bem seja a curar seja a escrever por quem não sabe. Um trabalho discreto mas próximo. E com o seu ritmo bem marcado pelo sino que vai dizendo que os monges vão rezando por quem mais precisa. Esta comunidade optou pelo caminho da não-violência; optou por ficar onde achavam que era o lugar deles e o lugar de Deus para eles. Houve caminhos pelos quais se recusaram trilhar, os mais fáceis.
A loucura do martírio será sempre como a loucura da cruz de São Paulo: poucos a hão-de entender. Mas fortalece-me, como cristão, ver que não há que temer pela nossa vida quando a entregámos ao Senhor (é uma das frases do Prior a um monge que estava indeciso entre ficar ou sair). Não se morre por teimosia. Morre-se por consequência da vida e das opções que fazemos e levamos. Foi assim com Jesus, assim deve ser com os seus seguidores.
Soube durante o dia de hoje que no ano 2000 foi restabelecida naquele mosteiro a comunidade (http://www.notredameatlas.com/). Soube também que o Prior do Mosteiro D. Christian, escrevia e que, com base nos seus escritos, se construiu uma "Biografia espiritual". Em francês...
Ontem, no filme, ouviram-se passagens do seu testamento. Encontrei-o na net em francês. Deixo-o aqui, (mal) traduzido em português, dando o conselho para quem ainda não viu o filme que não perca a oportunidade. Vale mesmo a pena.

Quando se tem de enfrentar um A-DEUS...

Se acontecer um dia - e poderia ser hoje -
em que eu me torne uma vítima do terrorismo que agora parece pronto a envolver
todos os estrangeiros que vivem na Argélia,
gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja e a minha família
se lembrassem que minha vida foi DADA a Deus e a este país.
Que eles aceitem que o Único Mestre de toda vida
não foi indiferente a esta partida brutal.
Que eles rezem por mim:
como poderia ser eu digno de tal oferenda?
Que consigam associar esta morte às muitas outras mortes
também violentas,
votadas à indiferença e ao anonimato.
A minha vida não tem mais valor do que qualquer outra.
E também não tem menos.
Em qualquer caso, ela não tem a inocência da infância.
Vivi o suficiente para saber que sou também um cúmplice do mal
que parece, infelizmente, prevalecer no mundo,
mesmo naquele mal que me mataria cegamente.
Gostaria que, quando chegar o momento, ter o momento de lucidez
que me permitisse pedir o perdão de Deus
e de todos os seres humanos meus amigos,
e ao mesmo tempo perdoar de todo o coração aquele que me atacar.
Não desejo tal morte.
Parece-me importante declarar isto.
Não vejo, de facto, como me poderia alegrar
se este povo que amo fosse acusado indiscriminadamente da minha morte.
Responsabilizar um argelino, quem quer que seja,
seria um preço muito alto para pagar
para aquilo que talvez seja chamado "a graça do martírio",
sobretudo se ele diz agir em fidelidade com o que acredita ser o Islão.
Estou consciente do desprezo que será dado a todos os argelinos indiscriminadamente.
Conheço também as caricaturas do Islão encorajado por um um certo islamismo.
É muito fácil salvar a própria consciência identificando-se nesta via religiosa
com os integrismos dos seus extremismos.
Para mim, a Argélia e o Islão são outra coisa: são um corpo e uma alma.
Disse-o frequentemente, creio eu,
sabendo que recebi aqui mesmo o verdadeiro caminho do Evangelho,
aprendido aos pés da minha mãe, a minha primeira Igreja de facto,
precisamente na Argélia, e já baseado no respeito dos crentes muçulmanos.
A minha morte, evidentemente, parecerá dar razão
aos que me julgam apressadamente ingénuo ou idealista:
"Que diga agora o que pensa!"
Mas estas pessoas precisam compreender
que a minha mais ávida curiosidade será então libertada.
Eis o que serei capaz de fazer, se Deus quiser,
mergulhar o meu olhar no do Pai,
para contemplar com ele os seus filhos do Islão tal como Ele os vê,
todos iluminados da glória do Cristo,
frutos da sua Paixão, cheios do Dom do Espírito,
cuja alegria secreta será sempre de estabelecer a comunhão
e de restabelecer a semelhança, brincando com as nossas diferenças.
Desta vida perdida, totalmente minha e totalmente deles,
dou graças a Deus que parece tê-la querido inteira
para esta ALEGRIA em tudo e a apesar de tudo.
Neste OBRIGADO onde tudo fica dito,apesar da minha vida,
incluo-vos, amigos de ontem e de hoje,
e a vós, ó meus amigos deste lugar,
ao lado da minha mãe e do meu pai, das minhas irmãs e dos meus irmãos e suas famílias,
foi-me dado cem vezes mais como estava prometido!
E a ti também, amigo do meu último minuto,
que não terás consciência do que fizeste.
Sim, também por ti quero AGRADECER e este "A-DEUS" é para ti.
E que nos possamos encontrar, ladrões felizes, no Paraíso,
se Deus quiser, o Pai de ambos...

Ámen!
In sha'Allah!
Algiers, 1 de dezembro de 1993
Tibhirine, 1 de janeiro de 1994
+ Christian

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