A morte dos inocentes


Que Herodes não era flor que se cheirasse sabia-o toda a Judeia. Não vamos aqui desconsiderá-lo até porque ficou o com cognome de "o Grande". Mas era cruel. E, de certa maneira, um rei imposto pelo Império Romano, o que não agradava nada ao povo judeu. O seu grande problema, com o qual convivia diariamente, era o da legitimidade: não era da descendência de David. Por isso sentia o sabor amargo de não ser reconhecido pelo povo. E, às tantas, isto tornou-se uma obsessão; para que o seu reinado não fosse questionado nem sequer retirado do posto, mandou queimar alguns arquivos genealógicos onde estavam as linhagens mais nobres dos judeus.
por isso o medo era mútuo: de um lado o povo tinha medo de Herodes porque estava em nome do Império Romano e, por outro, Herodes tinha medo do povo e por isso mandou construir uma fortaleza, em Massá, para fugir caso aparecesse alguém da descendência de David, a linhagem real.
O reconhecimento de grandeza vinha-lhe das grandes construções que fez, profanas e religiosas. E tanto construía templos para os deuses pagãos como, por vaidade, construiu o templo judaico de Jerusalém. Mas, como na vida de qualquer mortal, nem tudo são glórias. Herodes casou com dez mulheres, matou dois filhos e, depois, foi um filho que o veio a envenenar...
Mas nestes entretantos nasceu Jesus. Sim, Jesus. O rei dos judeus, da descendência de David. Corria o boato em Jerusalém, por causa de uns magos que se tinham perdido, e procuravam ver o rei que tinha nascido. É claro que, Herodes, ao ouvir falar de um rei que tinha nascido, da descendência de David, ficou apavorado. O seu poderio estava em questão. Como se sentiu enganado pelos magos, que não lhe disseram onde estava o Menino, furioso, ordena o massacre de todos os rapazes com menos de dois anos. Só escapou um... o de Nazaré que, entretanto, tinha fugido para o Egipto. Isto nunca o soube Herodes. E aquele dia foi um dia de horror em Belém: gritos das mães e dos bebés, lutas dos pais com os soldados, alguns tentaram fugir mas não tiveram tempo, foram apanhados, sangue por todo o lado... Depois do massacre vemos as mães com os filhos mortos nos braços, a clamar justiça a Deus porque o rei, esse, era injusto e muito.
Pensar que esta maldade continua presente nos nossos dias... O que faz o poder, o que se faz por um posto... desviam-se mais frágeis, os mais inocentes, diz-se mal de um colega por causa de uma carreira, de um lugar de topo no trabalho, arma-se-lhe uma cilada... tantas maneiras de matar inocentes... tantas e tão subtis.
A Igreja valorizou sempre este dia e estes meninos como os primeiros mártires do cristianismo. Sem saberem foram mortos, injustamente, claro está, mas receberam a coroa e a palma da vitória.
Nestes dias tenho vindo a ler contos de Natal contemporâneos. São um bocado como o relato amargo da morte dos inocentes. Parece que há um certo gosto por um final não-feliz, tão contrário aos clássicos contos de Natal. José Saramago põe uma menina fazer um desenho e a pintar neve de preto porque no Natal lhe morreu a mãe; Fialho de Almeida põe uma mulher a dar à luz, e o marido à espera que o menino nasça para o atirar contra uma pedra: "Veio-lhe, de repente uma veneta e bruscamente, com um resfolgar de bezerro, escavacou o menino contra a rocha. A pancada dera na pedra um som de melancia podre, esborrachada em surdina, baça e turgente. Foi um momento, aquilo, e todas as coisas voltaram ao êxtase de inbstantes antes"; José Maria de Andrade Ferreira faz coincidir na noite de Natal uma briga entre namorado e ex-namorado de uma rapariga, Emília, briga que acaba na morte do namorado. Quanto à Emília, enlouquece e, no final do conto, aparece morta no cemitério, por cima da campa do namorado...
Mas, graças a Deus, ainda há excepções. Afinal a última vitória é a do Bem sobre o mal. Encontrei dois muito graciosos. Um, de Miguel Torga, em que o Garrinchas faz a consoada numa capela da Senhora dos Prazeres, no meio do monte e da neve, acompanhado com a Nossa Senhora e o Menino Jesus. Vale a pena aqui escrever os últimos parágrafos: "Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José
".
O segundo conto, adequadíssimo a este dia, é o de Aquilino Ribeiro, "D. Quixote contra o Rei Herodes", que aconselho a ler. E este post começou em Herodes e em Herodes acaba, com o D. Quixote no presépio, de guarda ao Deus-Menino.
(Imagem: Gioto di Bondone, O Massacre dos Inocentes, 1310)

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