O curativo

"Feliz o homem a quem Deus corrige! Não desprezes a lição do Todo-Poderoso. Ele é quem faz a ferida e quem a cura; Ele fere e cura com as suas mãos".
Ela adormeceu com um livro aberto entre as pernas, com dedo sobre esta passagem, sublinhada a vermelho, do livro de Job. O livro era o da Bíblia, ainda com escrita antiga, porque além da Bíblia ser muito antiga, a edição que tinha herdado dos pais também não era nova.
Nunca quis ter outra Bíblia. E agora, no canto da sala, sentada no cadeirão, com uma manta verde com riscas azuis sobre as pernas, ia passando grande parte das tardes. Aliás, na mesa de apoio, com tudo à mão, tinha a Bíblia, o terço, um livro de orações e umas fotografias dos entes queridos, uns ainda na terra dos vivos e outros já na terra da Verdade.
O filho aproximou-se e, ao tentar tirar o livro das mãos da mãe, acordou-a. Já várias vezes o filho tinha lido da Bíblia da mãe; sabia inclusivamente que, um dia, mais cedo ou mais tarde, o livro seria seu. Mas sempre o intrigou que a Bíblia da mãe estava quase imaculada. Em toda a Bíblia - já se tinha dado ao trabalho de a percorrer página a página - só aqueles dois versículos estavam sublinhados com um lápis de cor vermelha.
Teria sido ela? Porquê só aquela passagem? Porquê a vermelho? Eles, que falavam de tantas coisas, nunca tinham falado disso. Alguma coisa seria, pensava o filho; e alguma coisa foi, sabia a mãe.
Até que decidiu perder o pudor e perguntar diretamente porquê. A mãe olhou-o nos olhos, com um ar de ternura e de paz. Disse-lhe que há muito esperava pela pergunta; tinha até estranhado como é que ele nunca tinha avançado. Então a mãe, tirando os óculos e colocando-os em cima da mesa, pegou no terço, como se daí lhe viesse a força, e começou a contar.
Que, quase como acontece com toda a gente, Deus tinha-se tornado uma segurança para o bem e para o mal. Não daquelas seguranças de relação entre pai e filho ou marido e mulher. Aos poucos, era como que um amuleto: portei-me bem, dou-te graças, portei-me mal, defendeste-me; deixa-me continuar.
Assim tinha passado a sua adolescência e juventude, assim tinha vivido, com grande despreocupação, porque sabia que Deus, o seu protetor, ali estaria, como um pára-raios, a defendê-la.
Mas houve um dia, um dia concreto, que nunca esqueceu, que lhe mudou a vida. O mal tinha-lhe tocado.
Parecia que, de repente, ao olhar para o céu, não encontrava Deus. Que nada fazia sentido. Afinal, Deus tinha-a abandonado; ou ela é que tinha abandonado Deus. Estava confusa. Chorava. As lágrimas não eram de revolta, nem de incompreensão, nem mesmo de medo. Ela nem sabia bem porque chorava. Ou sabia, mas não era também assim tão grave que fosse para chorar. Ela que era uma mulher forte e que raramente chorava.
O marido notou-lhe nos olhos que alguma coisa se passava. Aqueles olhos tão vivos, de repente, tornaram-se num olhar vazio, distante. Perguntava-lhe o que tinha acontecido e ela respondia: nada.
Decidiu mudar de vida. Não é que fosse uma má vida... seria uma vida que não valia a pena continuar assim. Talvez até, em vez de se escrever "mudar de vida", melhor é que fique escrito, "pôr ordem na vida". E começou pelo mais simples: mudar a imagem que tinha de Deus. E propôs-se a ler a Bíblia. Não sabia como: do princípio para o fim, do fim para o princípio, ao acaso, como era moda naqueles tempos... Tinha ouvido um padre pregar, uma vez, sobre o livro de Job. Ela não tinha a prática da leitura da Bíblia. Não sabia se Job era o autor dos Salmos ou um profeta. Sabia que estava no Antigo Testamento. E o padre tinha falado de um certo homem, Job, talvez uma personagem figurativa de cada um de nós, que é provado pelo sofrimento mas que não desiste de Deus. E foi pelo livro de Job que ela começou. Ao serão, enquanto o marido deitava os filhos e rezava com eles, ela aproveitava para ir avançando na leitura, vagarosa, atenta, pouco de cada vez, e começou a perceber que do mal pode sair o bem, e de que Deus não abandona e que Deus fere e trata a ferida.
Ao ler estes versículos, meio distraída, voltou a ler. Não fazia sentido: Deus em vez de castigar, corrige? Fere mas depois trata da ferida com as suas próprias mãos, e feliz de quem se deixar tratar?
Começava a fazer sentido. De facto, Deus não castiga. Se calhar nós é que nos castigamos... E semeamos o que colhemos. E Deus protege quem quer ser protegido e acompanha quem quer a sua companhia. Sentiu necessidade de marcar aquela passagem. O seu filho mais novo tinha estado a pintar. Tinha dividido a folha em três partes. Numa parte, com muita calma pintou tudo de azul. No meio não pintou nada, ficou em branco. E na outra ponta, com muita força e à pressa, não sabemos se por ter de ir para a cama ou por qualquer outro motivo, pintou uns riscos, em várias direções, a vermelho. E ali deixou o lápis. Foi com esse lápis, mesmo sem ver a cor dele nem o desenho, que ela sublinhou aqueles dois versículos.
Os anos foram passando. Ela de facto, mudou. A maneira de ver Deus, a maneira de ver a vida, o relativizar o que é secundário e valorizar o que é verdadeiramente importante.
Agora, sentada naquela cadeira, passa os dias entre leituras de Deus ou sobre Deus. Nunca conseguiu ler a Bíblia toda, mas o livro de Job sim, como um ritual, pelo menos uma vez por ano, é lido com aquela calma e tranquilidade e novidade da primeira vez.
Depois de tudo isto contado, houve um grande silêncio. O filho queria saber que acontecimento tinha sido, mas também não queria entrar na intimidade da mãe. Mas atreveu-se a perguntar o que tinha acontecido. E ela, com a mesma calma com que tinha contado tudo até aqui, respondeu: um tropeção sem importância. Como os teus, quando eras pequeno. Tropeçavas, caías, e vinhas ter comigo a chorar e eu te fazia o curativo. Deus fez o mesmo comigo: Deus feriu-me, ou melhor, eu feri-me, mas também tratou da minha ferida.
(imagem: Willem de Poorter, uma mulher rezando)

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