Hora de tirar as máscaras

Está a acabar o Carnaval. É hora de tirar as máscaras, de dizer adeus à carne (carnaval quer dizer "adeus à carne" [carnelevamen]), e de entrarmos na seriedade da vida à luz de Deus (entrudo quer dizer "entrada" [introitus]).
Para mim, que sou um pouco sensível às questões da liturgia, espero estes tempos fortes como se fosse um ano novo. O mudar o livro da Liturgia das Horas, o livro de cânticos, são para mim pequenas liturgias que me fazem preparar para a seriedade da vida e das coisas.
Talvez para nós, padres, seja o tempo de menos recolhimento, porque começam as atividades quaresmais, as confissões, etc. etc.
Mas é bom haver este sentir comum, como povo, como Igreja, que se retira durante quarenta dias da "mesmice" da vida e tenta fazer um caminho mais consciente e coerente de conversão para Deus e para o Evangelho.
Para muitos a Quaresma é só a tradição do comer peixe à sexta-feira. Tradição pouco exigente, porque só se faz quando se lembra. Para outros há um esforço maior também de renúncia que pode ir do deixar de comer chocolates ou fumar menos dois cigarros por dia e três à sexta e até à privação de internet. É bom renunciarmos a alguma coisa, numa altura em que queremos ter tudo ao que temos direito e, às vezes, mais do que o que temos direito, que nos vem a prejudicar.
Mas, ultimamente, há pessoas que dizem que isto são só coisas secundárias, e que não valem nada. O que vale mesmo é mudar os comportamentos para com os outros. Não posso estar mais de acordo. No entanto, gostaria de me encontrar com essas pessoas, no fim da Quaresma, para lhes perguntar: Então? Novidades?. Não sou nem beato nem tradicionalista (acho eu)  mas, já que não cumprimos o principal, cumpramos ao menos o secundário.
Tirar as máscaras. Essa seria a verdadeira penitência quaresmal. Sermos mais amigos uns dos outros, mais solidários (o jejum serve para isso mesmo: o dinheiro que não gastámos numa refeição serve para ajudar os pobres)... não desperdiçarmos nem tempo nem comida com coisas banais, dedicarmos mais tempo à oração do que a dizer mal deste ou daquele, ou criticarmos tudo e todos... Como diz São Paulo numa das suas cartas "examine-se cada um a si próprio". Podemos andar todo o ano mascarados, e até toda a vida, mas, Deus, é aquele que vê para lá da máscara,  porque nos conhece como nós somos, o bom e o mau. Muito se deve rir Deus com os carnavais da nossa vida e com as nossas máscaras tão pintalgadas.
Começa a Quaresma e com ela o pregão à mudança de vida.
Deixo aqui hoje, um pregão de quarta-feira de cinzas, escrito por um dominicano francês, composto para ser cantado no início do ofício das vigílias que mais não é do que um convite a regressar a Deus.
Igreja de Deus, regressa ao teu Senhor!
Regressa no jejum e nas lágrimas
inclina-te e humilha o teu coração
porque pecámos!
Regressa na misericórdia e no perdão,
na ternura e no amor,
porque o Senhor é um Deus de piedade,
lento para a cólera, mas rico em graça e fidelidade!
Na noite, tu procuraste Aquele que o teu coração ama,
tu procuraste-o e não o encontraste,
porque o teu coração obscureceu o teu caminho,
a tua alma está aflita,
e tu caminhas curvado e sem forças.
Procura o teu Senhor porque Ele está próximo,
e é Ele que te procura, o Primeiro,
deixa-te agarrar por Ele,
porque foi Ele que já te encontrou!
Olha: é Ele que vem até ti,
a saltar pelas colinas à procura da ovelha perdida!
Escuta: é a sua Voz quem te chama:
"Vem, amada minha, toda bela, vem!"
Volta o teu coração para o Senhor,
Grita-lhe com todas as tuas forças!
Quem sabe se ele não acalmará o ardor da sua cólera,
para que tu não pereças?
Vê: ele trata-nos com uma imensa bondade!
Senhor, nós queremos louvar-Te
e invocar o teu Nome
pelos séculos dos séculos. Ámen.

(Imagem: Ridolfo del Ghirlandaio, Sua cuique persona [cada um tem a sua máscara], séc. XVI)

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