Um centenário

Há umas semanas coloquei na agenda do computador o primeiro centenário do meu avô paterno. Nunca aqui falei dele; chegou hoje o seu dia.
Para dizer que foi das pessoas mais calmas que conheci. Tudo o contrário da minha avó paterna e do meu lado materno. Quando nasci tinha ele 62 anos. Homem pobre, com sete filhos, com o pouco que herdou dos pais e dos sogros teve que migrar, poucos quilómetros, para uma terra do mesmo vale, o Rossão, para ir fazer umas terras e delas tirar algum lucro. Os filhos foram todos à escola. Não passaram da instrução primária, mutilados da infância e do estudo porque de casa iam para a escola e da escola voltavam para casa para ir trabalhar. As raparigas, tecedeiras como a mãe, os rapazes ficavam por conta do pai. Os mais velhos a cavar e a lavrar como homens e os mais novos ajudavam no que podiam, iam para o monte e os do meio - o meu pai, por exemplo - iam muitas vezes de terra em terra entregar as mantas feitas no tear.
Tudo se criou, refrão muito usado por quem passou muito e de muito se privou. Os filhos contam hoje com lágrimas nos olhos o que sofreram e fizeram sofrer, sobretudo nas teimosias e nas cotra-vontades.
Mas do meu avô fica a imagem de um homem que muito trabalhou, de sol a sol - e não é figura de estilo, muito se sacrificou e muito terá sofrido por nem sempre a vida lhe correr de feição.
Fica também a imagem, esta das mais remotas, de ir com a gadanha aos ombros ajudar o filho a cortar feno, ou de a "picar" para não estar sem fazer nada. Homem atento aos trabalhos do campo e às ajudas que podia dar.
Não eram pessoas de beijos nem de prendas nem de grandes doçuras. Mas gostavam de nós e isso era notório.
Quando me ordenei padre mudou a relação. De repente começou a tratar-me por você. O meu estranhou e perguntou o que se passava, ao que ele respondeu: o respeito aos padres não é só para os de fora. Enterneceu-me a edução, disse-lhe que não era preciso mas ele continuou
Viu morrer a mulher e dois filhos (o meu pai primeiro e uma tia minha pouco tempo depois) e nunca mais foi o mesmo. A idade ia avançando e morreu com 93 anos. Quando se deram as partilhas, chamaram-me para escolher da casa o que quisesse. Pedi só duas coisas: um copo de folha que o meu pai tinha trazido da tropa e um banco de três pernas, onde muitas vezes ele se sentava e se levantava para nos sentarmos por ser um banco diferente. O copo tenho-o comigo, o banco está em Feirão
Hoje, dia dos cem anos do meu avô, fico com a imagem mais bonita que dele tenho e que se fosse pintor tinha-a deixado impressa: o meu avô sentado debaixo da nogueira, a apanhar o fresco. Aí nos juntávamos para conversar, nas tardes de verão, sobre a vida, deles e nossa. E agradeço a Deus este homem simples, de poucas palavras mas de muita calma e muita ternura.
(fotografia da antiga casa dos meus avós paternos. Do lugar onde foi tirada está a nogueira)

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