Como foi?

Na minha família alargada, temos o costume de ir muito ao passado. Com muita facilidade lembramos histórias e anedotas do passado, lembranças e afins. Há também a "tradição" das fotografias. Mostrar aos mais novos, uma e outra vez, até eles saberem identificar quem eram os que naqueles longínquos anos ficaram registados numa fotografia. Eu próprio, algumas vezes o fiz com as minhas sobrinhas, mostrando e perguntando quem era que estava na fotografia.
E assim a memória se tem mantido viva.
Do meu nascimento só há uma cédula pessoal, preta, onde consta que nasci. Igual ao meu caso, milhões. Mas a família sabe mais que os dados oficiais. Tradições orais, que vão passando e que, no dia de hoje, se tornam presente. Como não tenho filhos e netos não hei-de ter, aqui fica, para a posteridade e por escrito o que sei do meu nascimento.
Esta manhã, quando acabámos de rezar Laudes, um frade perguntou-me: a que horas nasceste? E eu, olhando para o relógio, respondi: a esta hora.
Assim foi. Ao contrário de muitas crianças não nasci na maternidade Alfredo da Costa nem na freguesia de São Sebastião da Pedreira. E também não nasci em casa. Talvez tenha sido o primeiro da família a nascer fora de casa. Nasci na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, numa clínica que, entretanto, desapareceu. Nasci manhã cedo, pouco depois das oito. Primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho. Amado e talvez mimado sempre senti um amor e uma presença muito forte da minha família. Ainda hoje. O nome que me deram, José Filipe, não veio do acaso. Os meus pais escolheram como meus padrinhos os meus avós maternos, de quem guardo as mais belas recordações. Falo de gente simples e pobre, muito pobre, até. Foi a simplicidade de pertencer a Feirão e a pobreza que lá se vivia que fez com que os meus avós tivessem de vir para Lisboa, como tantos outros vieram, a ver se a pobreza abrandava. Mas voltemos ao nome. Os meus avós escolheram José e Filipe. Explicou-me uma vez a minha avó: Escolhemos José pelo teu padrinho (José) e Filipe por causa de um padre Filipe, prior de Feirão, que foi muito bom para connosco. Além de não nos levar dinheiro pelos baptizados e pela congrua, ainda nos ajudava com alguma coisa para matar a fome. Tenho eu este nome e esta dívida. Nada sei deste padre mas gostei da homenagem que lhe prestaram. Dou graças a Deus pelo meu nome e pela carga que ele tem.
Nasci bem, perfeitinho e bonitinho, como se diz de todos os bebés. Na tarde do dia em que nasci, o meu pai levou a minha avó a ir ver o neto". Dizem eles que entraram numa sala onde estavam os recém-nascidos e, quando passaram por mim, a minha avó disse: quem dera que fosse este: tão perfeitinho. Lá perguntaram à enfermeira onde é que eu estava e era mesmo eu, o tal perfeitinho. Aparentemente todos somos perfeitinhos; mas creio que, quando tomamos consciência da nossa vida, apercebemo-nos das imperfeições.
Depois dos dias regulamentados vim para casa. Preparou-se o meu baptismo, 1 de Janeiro, baptizado por um Padre João, que também nada sei dele, a não ser que já não exerce o ministério e que não vive em Portugal. A única recordação que tenho deste dia é um fio de ouro, muito fininho, com uma cruz mordida. Oferta dos meus avós, que guardo com respeito e, de vez em quando, ainda uso.
Depois disto, creio ter tido uma infância feliz. Lembro-me dos meus anos, sempre em casa da minha avó e sempre toda a família, não no dia de anos mas no domingo seguinte, para todos poderem estar. Ainda hoje, no domingo após os meus anos, não já todos mas grande parte de nós ainda nos juntamos. Com o nascimento do meu irmão e dos meus primos, a festa de anos foi adiada para o domingo a seguir ao dia do meu irmão, também ele nascido neste mês. A minha mãe sempre fez o mesmo bolo de aniversário. A receita estava num pote de porcelana. Perdeu-se e adeus bolo. Felizmente que há alternativas e boas.
E assim foi a minha génese. Não há fotografias de ecografias nem de berçários, Nem do meu baptizado. Creio que a mais antiga que tenho é a que acompanha este post, tirada nas escadas da igreja de Marvila, num casamento de um tio paterno.
Sinto-me muito e verdadeiramente amado por Deus e pela minha família. Sinto que os amigos que tenho são também um dom de Deus, e quase seus anjos no meu caminho. Nem Deus nem a família nem os amigos se me impuseram e sempre respeitaram a liberdade e independência que preciso. Agradeço-lhes a eles e a Deus. Quando andava na primária gostava de desenhar caracóis. E identifico-me com eles: gostam de andar livres; quando se sentem rodeados, ameaçados ou lhes tocamos nas antenas metem-se na carapaça. Como eu.

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