João de Deus

Naquele longínquo outono de 1894, uma jovem rapariga, antes do sol desaparecer, uma rapariga, que tinha dado à luz durante a noite anterior, pegou no seu crio, entre lágrimas e dor, e saiu de casa. Não podia criá-lo. A pobreza em casa era mais que muita, mais uma boca para alimentar era mais fome, o rapaz que lho fez não quis saber nem dela nem dele… O engodo foi grande: que gostava muito dela, que a amava e até que queria casar com ela… mas precisava de uma prova da parte dela. Ela, coitada, a pensar que entregando-se seria a melhor prova de amor, deu-lhe o que ele quis. O problema foi que ele fartou-se dela ao cabo de um mês, que afinal era novo para se casar e ela que pensasse noutro porque ele não ia casar e o amor tinha arrefecido. Ela, coitada, decidiu esconder a barriga o mais que pôde, o que não foi difícil porque entre as roupas e as vagueações pelos povos a mendigar pouco se via por casa. Saia manhã cedo e chegava já à hora da ceia. Não se escondia nem mentia, ia mesmo mendigar. Trazia umas fatias de pão de trigo, umas maçãs ou umas castanhas, o que a generosidade dos outros permitisse. Nas vésperas do parto disse aos pais que ia pedir para longe, só por dois ou três dias, onde a não conhecessem; talvez tivesse mais sorte. Saiu manhã cedo, com a capucha nos ombros, uns panos e uma navalha na sacola lá foi ela. Foi subindo a serra, enquanto pôde e, ao chegar a noite, as dores apertaram e ela, ao ver um palheiro, meteu-se lá dentro. Estava a chegar a hora. Sozinha, deu à luz o seu filho, sem ajuda nem gritos; foi-lhe amiga a lua, lua que estava cheia e, entre as falhas do colmo do palheiro, conseguia entrar o luar claro. Nunca aquela lua brilhou tão forte. Mal o menino nasceu, cortou o cordão com a navalha que tinha trazido, fê-lo chorar, limpou-o, embrulhou-o nos panos, deu-lhe de mamar, passou a noite com ele, tentando que o menino não os denunciasse com o choro. As lágrimas eram muitas, olhava para o seu filho e era como que lhe cortassem o coração. Que seria dele? E dela? Mas não podia ser. Não o podia criar. Tinha que o abandonar mas com a certeza de que o menino não morreria esquecido, com fome ou frio. Menos mal que aquele dia vinte e oito de Outubro tinha acordado soalheiro e sem nuvens à vista. Sabia que ali perto havia uma taberna e que, apesar de não passar muita gente naquele caminho, o choro da criança iria chamar alguém para o encontrar. Amamentou bem o menino e, ao final da tarde, cobriu-o de beijos, rezou à Senhora dos Milagres que olhasse por ele, embrulhou-o nos panos, despediu-se dele: Que Deus te guie, meu menino, e meteu-o na soleira do palheiro e despediu-se dele: Ficava à vista e abrigado. A estrada estava limpa, de um lado e doutro, virou costas e, despachada, meteu-se pelo meio do monte, fora dos caminhos, e regressou a casa. Chorava e rezava, pedia perdão a Deus e ao menino, sempre sem se virar; se se virasse, quebrava.
Avistou a sua aldeia já noite feita. O sino tocava a trindades. Já estava tudo recolhido, era bom porque ninguém a via chegar e não havia perguntas. Pensava assim mas, coincidências que as não há, aparece-lhe o pai da criança. Viu-a triste e cansada, perguntou-lhe se estava bem. Ela parou, olhou-o nos olhos e disse-lhe que sim, que estava tudo bem, “espero que tudo esteja bem”, foram as palavras. Entrou em casa, sacola vazia, tudo tão estranho. A mãe perguntou-lhe como tinha corrido e ela, em poucas palavras respondeu: mal, correu mal, vim pior que o que fui. A mãe deu-lhe uma malga de sopa, de uns feijões e batatas que lhe deram, que engrossou com arroz e massa.
Mas ao menino e ao borracho mete Deus a mão por baixo.
Não tardou uma hora entre ter ficado abandonado e ter sido encontrado. O António e a Maria Francisca tinham uma taberna na Barraca, um lugar que pertence à freguesia de Feirão. Ela raramente saia; ficava sempre por casa, a aviar na mercearia na taberna. O António, além de a ajudar, ia bastas vezes a Resende ou a Lamego, para se abastecer do que fizesse mais falta. Naquele dia cismou que tinha de sair. Não era costume sair à sexta-feira mas ele, porque no fim-de-semana tinham vendido muito e os santos e finados calhavam nessa semana, decidiu arrear o burro e ir a Resende precaver-se de vinho, que o Novembro, por causa das castanhas, pede do bom. Não saiu cedo porque não tinha pressa. Que almoçava por Resende, fazia as compras e que chegava antes do sol bater o Penedo Gordo. vai com Deus, disse-lhe a mulher, que a Senhora da Guia te guie. Lá foi o bom do António. Passou pelo palheiro, estranhou a porta não estar bem fechada mas pensou que lá teria sido o Vitorino que teria vindo ao palheiro. Fez o que tinha a fazer em Resende e regressou a Feirão. Já perto da casa, ao olhar de novo para a porta viu que estava bem aberta. Estanhou mesmo porque o Vitorino não era homem de deixar a porta aberta. Das duas uma: ou estava por perto ou alguma coisa se tinha passado. Parou o burro, gritou pelo Vitorino e, em vez de ouvir o Vitorino ouve o bebé a chorar. Valha-me Deus, o que é que se passa aqui, quem é que está a chorar e, quando olha para o chão, no canto, está o pobre bebé a chorar. O Vitorino que é homem não sabe se o choro é de frio ou de fome. Foi do grito, talvez. Pegou no pequeno, abraço-o contra o peito, deu ordem ao burro para andar e ele lá foi a correr e a gritar pela mulher: Maria, ó Maria, andá cá rápido. Olha o que encontrei. E a Maria Francisca, aflita pelos gritos do marido, foi-lhe ao encontro, e quando o marido abre o peito e lhe mostra o menino, tão pequenino e indefeso, pegou-lhe ao colo e, experiência de mãe, disse: frio não tem que não está roxo e fome parece não ter senão ninguém o calava. Quem nos há-de acudir? Decidiram, então, chamar o padre e, ao filho mais velho, que já andava bem sozinho à noite, mandaram-no ir depressa a casa da Ana Vilar, que tinha tido bebé há menos de um mês, para que viesse rápido, que era o pai que pedia. E que trouxesse o pequeno porque não sabia se ia demorar.
A Maria ficou com o bebé, o António foi chamar o padre Diogo, que vivia em Pretarouca e o filho lá foi chamar a Ana Vilar.
A Ana chegou rápido. Veio com o marido. O que é que se passa, de quem é esse bebé, o que tu foste arranjar, só perguntas e exclamações. A Maria Francisca pediu-lhe que lhe desse de mamar. Não é que tenha fome, que está calado, mas dá-lhe de mamar, tu que tens leite. E a Ana Vilar pegou no bebé, como se fosse seu, e deu-lhe de mamar. O pequeno bebé mamou e não estranhou. Tão bonitinho e tão perfeitinho, dizia enquanto o embalava. De quem será, perguntava e dizia: se não aparecer quem o fez e quem o pariu fico eu com ele, que onde comem dois comem três. Entretanto chegou o padre Diogo. Já estava ao corrente do sucedido e, depois de conversarem sobre o que fazer decidiu-se: que o padre iria a Resende falar com o Administrador a informar o sucedido e que, dali a dois dias, se não aparecesse ninguém, que o baptizava e que a Ana o criava. Os padrinhos seriam quem os encontrou: o António e a Ana. Todos de acordo, só faltava dar-lhe o nome. Que lho dê o senhor padre que é quem o vai baptizar. E o padre disse: se estiverdes de acordo, vamos por-lhe o nome de João, porque foi o João quem foi chamar a Ana. E de apelido, vamos pôr-lhe “de Deus”, porque foi Deus quem no-lo mandou para o amarmos e criarmos. A assim foi. No dia um de Novembro, dia de todos os santos, na igreja paroquial de Feirão, com os sinos a tocar, tudo se fez como se tinha combinado. No fim do baptizado o padre Diogo fez o registo do baptismo com os seguintes dizeres:
"No primeiro dia do mês de Novembro do ano de mil oitocentos e noventa e quatro, nesta Igreja paroquial de Santa Luzia de Feirão, concelho de Resende, diocese de Lamego, baptizei solenemente um indivíduo do sexo masculino, a quem dei o nome e cognome de João de Deus, e que na noite do dia vinte e nove do mês de Outubro do mesmo ano, às dez horas pouco mais ou menos, foi encontrado à porta de uma casa de palheira, que pertence a Victorino Rosinhas, de Paredinhas, freguesia de Paus, do mesmo concelho, sito no lugar da Barraca de Feirão, desta dita freguesia, por António Monteiro Barato, casado, vendeiro, que é natural da supradita freguesia de Paus, mas actualmente morador numa casa da dita Barraca, próxima da que onde apareceu o infeliz infante baptizado, e que mostrava ter nascido vinte e quatro horas antes, e cujos pais se ignoram.
Foi padrinho o supramencionado António Monteiro Barato, casado, taberneiro, natural da freguesia de Paus, e agora morador no lugar da Barraca, freguesia de Feirão, e madrinha sua esposa Maria Francisca, proprietária e taberneira, natural da dita freguesia de Paus e presentemente moradora na dita Barraca. O infante, depois de baptizado, foi apresentado ao Administrador e Câmara do concelho e por ser mandato, entregue a Ana Rodrigues Vilar, casada, trabalhadeira desta freguesia de Feirão, para o amamentar e criar, e ela se encarregou de cumprir os seus deveres para com este menino. Para constar, lavrei em duplicado este assento, que depois de ser lido e conferido perante os padrinhos, não o assinaram, por não saberem escrever. Era ut supra. O Pároco Diogo José Rodriguez."
(A história é imaginada mas o registo é verdadeiro. Transcrevi do livro de Baptismos de Feirão.)

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