Fátima descaracterizada

Há muitos anos atrás, um dominicano português que usou o pseudónimo "João Ilhargo", escreveu um livro a que deu o título de "Fátima desmascarada". O título era excessivo - talvez por isso tivesse usado o pseudónimo - mas era um rebate às memórias de Lúcia, tentando descobrir o que era inventado por parte dela e não condizia com as aparições. Cem anos depois das aparições volta o mesmo rebate, já não só criticando os exageros da Lúcia que transformou uma mensagem simples e concreta num vale de devoções e visões, complicando e exagerando e, claro está, interpretando tantos anos depois a simplicidade das aparições. Basta comparar as singeleza das respostas ao interrogatório com as memórias e os seus acrescentos posteriores.
Mas eu não quero tornar-me numa réplica de João Ilhargo. Para mim é claro e transparente que uma coisa é o fenómeno de Fátima (sejam aparições ou visões) e outra é a excessiva mensagem com os seus apelos e repiques.
Chamei a este post "Fátima descaracterizada". Porque começo a perceber que Fátima está a perder aquela simplicidade e proximidade que durante tantos anos foram bons ares para quem por lá passava.
A liturgia dos passados dias 12 e 13 foi uma liturgia que eu diria "de espectáculo". Até ouvi um comentário que perguntava se aquela música não era banda sonora de um filme... A simplicidade das pessoas que gostam de cantar e rezar à vontade foi simplesmente abafada pelos cânticos novos que pouca gente terá cantado e, os poucos que eram conhecidos, com vozes e entradas a tempo e a contratempo e orquestra não deram para grande expansão participativa. Ou seja, Fátima já não é o lugar onde a música litúrgica tem em conta a assembleia - inibindo-a - mas sim o espectáculo. Tenho pena que em Fátima haja tantos especialistas em liturgia e que os mesmos tenham tão pouca sensibilidade pastoral. Dou outro exemplo concreto: na semana passada estive em Fátima, integrado na peregrinação da Família Marista. Oferecemo-nos para a presidência da Missa, para as leituras e para os cânticos. Há uns 8 anos atrás tudo isso era possível: deixavam-nos celebrar às 10 horas no auditório Paulo VI, a presidência era alternada entre o capelão do colégio de Carcavelos e o de Lisboa, formava-se o coro que cantava músicas litúrgicas (conceito tão lato e tão vago) e a Missa era vivida num verdadeiro espírito de família. De lá para cá têm vindo a podar de tal maneira que o arbusto já quase não se vê: não podemos celebrar no Paulo VI e, por isso, temos de nos integrar numa das Missas oficiais do Santuário; não podemos presidir à Missa porque só os bispos e capelães do santuário podem presidir nas Missas oficiais; os leitores também já só podem ser os que estão alocados nas listas dos leitores do santuário; e o coro, pode cantar mediante proposta de cânticos que tem de ser aprovada pelo secretariado de Liturgia do Santuário (no caso deste ano creio que recusaram duas propostas). Mas este é só um exemplo... Outro, também para ilustrar, foi o caso de eu ter acompanhado um grupo de peregrinos a pé. Chegávamos a  um domingo perto do meio dia. Pedi também para podermos ter celebração de Missa numa das muitas capelas do santuário, pelo meio dia (sem grande certeza porque teríamos de respeitar o andar pesado e cansado dos peregrinos) e a resposta foi nestes termos: aos domingos não aceitamos missas de pequenos grupos e teríamos de nos associar a uma das missas já marcadas (12.30h ou 15h). Fiz ver à senhora da resposta ao mail que era absurdo pedir a peregrinos a pé que se despachassem para estar na missa das 12.30h ou que esperassem pelas 15h (sobretudo havendo padre!). Regras são regras, nada feito. Acabámos por vir celebrar a Missa a Lisboa, ao final da tarde.
Voltando ao dia 12 de manhã, espreitei pela internet o ambiente da Capelinha e era Missa atrás de Missa. Cada uma numa língua, as pessoas que lá estavam pouco se interessavam pelas Missas porque não iriam arredar pé do lugar que tinham arranjado... E fico-me por aqui de exemplos.
No entanto, não quero terminar sem fazer alusão a um livro sobre liturgia de Romano Guardini, que é de leitura obrigatória para os liturgistas e simpatizantes, que logo no primeiro capítulo faz a distinção entre liturgia e piedade popular. Escreve assim Romano Guardini: "A par das formas de piedade estritamente objectivas e rituais, surgem outras atitudes espirituais em que predomina o elemento subjectivo, por exemplo, as manifestações da piedade popular, tais como a recitação em comum do rosário, as devoções locais e as que se propõem obter algum fim particular, etc. Estas formas têm muito nítido o cunho de uma região ou época determinada; apresentam-se como expressão imediata de uma fisionomia moral duma paróquia ou de um grupo (...). Não se pode pretender que a liturgia seja a forma exclusiva da piedade colectiva. Seria isso um grave erro que desconheceria as necessidades espirituais do povo crente. Muito pelo contrário, é conveniente que ao lado da liturgia subsistam as formas da piedade popular e que elas se afirmem e desenvolvam livremente segundo as exigências locais, sociais, nacionais e históricas de um povo. Na verdade, nenhum erro seria mais cheio de consequências do que sacrificar ou pretender a todo o custo adaptar à liturgia fórmulas sadias e preciosas de espiritualidade popular".
Em Fátima sinto cada vez mais esta "mania" de querer liturgicizar tudo. Fátima não é dos liturgistas mas é do povo. No meu entender, em Fátima é possível harmonizar solenidade e simplicidade. Basta que os liturgistas se abram ao mesmo espírito de Fátima: simplicidade nas formas e nas fórmulas. Em Fátima o acolhimento não passa só pelo atendimento aos peregrinos; na liturgia também deve haver acolhimento para nos podermos sentir bem e em casa. Não se admirem os liturgistas de Fátima quando ouvem dizer que preferem o Santuário fora das celebrações e fora dos grandes ajuntamentos... Admirei-me eu de o Papa e dos liturgistas papais terem puxado do lenço para dizer adeus à Virgem: bom senso.
Pela minha parte, como Fátima é grande, começo a preferir os espaços religiosos e litúrgicos alternativos ao Santuário: dão-me mais paz e vontade de rezar. Mas dá-me pena que cem anos depois das aparições, Fátima esteja liturgicamente tão descaracterizada.

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